quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Escalão B

1º Prémio

                                                              «É para ti, espero que gostes…»
O meu nome é Alice, tenho 67 anos e uma história de vida. Namorei desde os 12 anos com o mesmo rapaz, hoje meu marido. João, é o teu nome. João, de coração. João, de dor.
Crescemos juntos, tivemos a mesma adolescência (ou muito semelhante), a primeira casa, o primeiro emprego, o primeiro desgosto de amor, provocado por um de nós (alternadamente). Aos 12 o primeiro beijo, aos 15 o primeiro aperto, aos 22 o primeiro desconsolo, aos 40 a partilha da dor, aos 55 o desabrochar para uma nova vida, aos 66 o acreditar num milagre…

Agora, com todas estas vivências, quero proporcionar-te o melhor Natal das nossas vidas. Não posso pedir-te que nunca o esqueças. Não posso esperar que me agradeças louca e profundamente, como outrora fazias. Um sorriso teu, um brilho nos teus olhos vai compensar tudo, vai valer por tudo.
Bom dia, como estás? Cada dia é uma luta por isto, pela vida, não é meu João, el-rei de Portugal, alma profunda e silenciosa? Hoje, a tua casa é minha, o teu aconchego, a tua vida resume-se a este quarto, a esta cama que hoje te pode proporcionar por breves segundos os melhores episódios da tua infância que já lá vai, que já lá está, que sempre lá esteve. Lembras-te da nossa aldeia, de toda aquela neve branca que cobria o telhado da nossa casa? Que nos preenchia por dentro, dando-nos um aconchego tão suave a pensamentos felizes? De todas aquelas crianças de bochechas encarnadas que corriam em direcção à igreja para ouvir soar os sinos por esta altura, de todas aquelas luzinhas brilhantes, do presépio enorme da aldeia e nós, cobertos pela auréola do amor, calorosos, bebendo café quente no alpendre e trocando sorrisos?
Lembras-te de quando um nada era um tudo, de quando mil palavras não chegavam, de quando um “até breve” significava uma imensidão de tempo, de quando nem sentíamos as estações a passar e no entanto já era Natal? É Natal. O tempo corre, agora sentimos, sinto, o tempo a passar devagar. Quero recuar no tempo, a esse tempo em que éramos adolescentes sorridentes, bebendo café quente no alpendre.
Queres sair e não podes. Apoderou-se de ti, esse negrume, essa doença. Mal sei pronunciá-la, muito menos escrevê-la para ti. Sei apenas que com ela batalhas todos os dias e envelheces à força e eu aqui estou, a teu lado, para escrever para ti, num pedaço de folha que diz “não me deixes”, com uma caneta que mal escreve… (será culpa dela ou dos meus dedos velhos e gastos que tremem sem cessar?). Eu aqui estou para te lembrar, se assim for possível, que quando acordares desse teu sono profundo, desse teu viver tão forçado, que eu estive cá e tu vences-te, meu amor.
Estás mais fraco, não queres comer. Rejeitas-me, desconhecendo-me por completo. Só os teus olhos, só eles dizem que o meu nome é Alice, casada com João, amor feliz, amor eterno.
Descuidei-me, o sentimento, a preocupação por ti é tanta, é tudo tão profundo que ganhou asas e voou. Como um espelho, reflecti tudo o que sinto, tudo o que sentia. Os vizinhos sabem, as paredes reconhecem-no, os gatos clamam todas as noites à lua, baixinho, em jeito de segredo, murmurando o teu nome, João. Sei que planeiam algo, só não sei o quê. Quando souber dir-te-ei, não quero que percas nada neste Natal, quando acordares.
Acordei triste, lágrimas nos olhos, já não sei se espero, se vou primeiro, não sei como lidar contigo. Vá faz um esforço preciso de colocar-te a camisola, tapa-te está frio. Uma concha de sopa, duas para ti. Devo continuar, por ti. Estamos tão perto e tão longe. O teu olhar fica cada dia mais profundo. Já não sei se hei-de acreditar nele, se o desmentir. É Natal. Lembro-me de tempos que já não voltam, lembro-me do que significa esta época. União, família, carinho? Amor…ofereço-to. És tudo, és o que me une a esta vida, ao passado, ao presente a um futuro perto e desconcertante. És família, um abraço, um motivo.
O teu corpo cada dia mais frágil fica. O que pensarás? O meu corpo gela a cada segundo que passa, deito-me a teu lado, acaricio as tuas últimas madeixas de cabelo. O teu corpo toca no meu, agarra-te a mim. Como me chamo, João? Sorris, com os olhos levemente, mas sugaste as minhas últimas esperanças. Quere-las todas para ti? Como assim, não partilhas? Estás intocável. O teu corpo desfaz-se no meu, viras-te para o outro lado. Não, não me abandones agora, por favor. Abraço-te como se fosse a última vez, deixei bem claro. Viras-te e beijas-me. Bafejaste-me com a tua essência mais uma vez: “Alice, casas comigo? Permaneces comigo até ao fim dos nossos dias?”
Vejo-te com olhos de quem te vê pela primeira vez, sorris acenando-me lá do fundo, um longo abraço, um leve adeus. Feliz Natal.
                                                                                                      Da tua sempre
                                                                                                             Alice.

Isabel de Andrade ( Catarina Florentim)- Esc. Sec. João de Barros - Corroios