quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Escalão B

2º Prémio
                                                                        Nevava na Serra

Caíam as primeiras folhas de Outono na pequena aldeia nos arredores da Serra da Estrela. Martim Reyes mudara-se recentemente para uma casa de familiares da sua mãe, deixando a vida luxuosa que ostentava na cidade de Madrid, devido à morte do seu pai.
Escola nova. Começavam as aulas na aldeia do Sabugueiro para Martim, que iria frequentar o nono ano. Dotado de uma inteligência incomum, sentia-se frustrado por se encontrar num plano superior até ao do simples professor da terrinha… Os colegas de turma achavam-no arrogante, de nariz empinado, “com a mania” de que era o melhor e superior a tudo e todos. Ele era de facto tudo isso, e não parecia importar-se ou ligar a qualquer tipo de comentário.

Embora fosse uma pessoa com a qual se tornava complicado estabelecer qualquer tipo de relação, ele tivera já alguns “amigos” (bem sabia que na realidade não o eram)... Aquando da partida, rapidamente percebeu que não mais os voltaria a ver. Sentia-se só e abandonado.
Passadas algumas semanas, nada se alterara na vida de Martim. Bem, nada excepto a sua frustração e descontentamento, que não cessaram de aumentar. Irritado com o seu afastamento na escola, quer a nível social quer a nível intelectual, e angustiado com a sua nova realidade, Martim tinha agora apenas um desejo: voltar à vida que outrora levara, pois este não era, certamente, um lugar de sonho para ele, habituado á grandeza, viagens e tudo o mais que o dinheiro do “papá” pudesse comprar.
A sua mãe, já cansada de manifestar a sua posição em relação aos constantes devaneios de Martim relativamente ao tema da mudança, mantém a sua decisão de querer ficar na aldeia que a viu nascer, tratando dos seus pais, principalmente de sua mãe que se encontrava bastante doente. Esta era uma notícia que Martim desconhecia e ignorava por completo, o que a entristecia deveras.
O Natal adivinhava-se próximo e as aulas haviam terminado, sendo sem grande surpresa que o único filho dos Reyes completou o 1º período com notas brilhantes.
Um dia, a neve começou a cair ligeira, sonolenta, contagiando a Serra com um frio invernal. Os adultos passavam nas ruas indiferentes a este fenómeno habitual, mas as crianças… Essas brincavam, riam e corriam felizes da vida, sem se preocuparem com nada. Martim dormira a manhã inteira. Esquecera-se completamente que a sua mãe partira para Madrid com o intuito de tratar de assuntos relacionados com o testamento do falecido marido. Estava faminto. Ao descer até ao rés-do-chão da sua “nova” casa, encontrou a sua avó Celestina, que acabara de abrir um livro, algo parecido a um velho álbum de fotografias. Aproximou-se lentamente. A avó, quando o viu, puxou uma cadeira para que ele se sentasse ao pé de si e pediu-lhe gentilmente para folhear o álbum. Sem refilar, meio a dormir, este acabou por aceitar o convite. Os seus dedos mudavam as páginas com desdém, até que se deteve… Olhava agora para uma página cheia de fotos dele, mas onze anos mais novo! Esquiava (ou tentava fazê-lo) com os pais e os avós e esboçava um enorme sorriso, de orelha a orelha. Era feliz, apercebeu-se. O que mudara então? Na altura o pai não tinha ainda a fortuna que ele hoje herdava, porém, eram felizes como nunca imaginara… A avó levantou-se e saiu. Martim continuou a folhear o velho livro das fotografias com um brilho diferente no seu olhar habitualmente distante. Nevava agora com mais intensidade. Alguns minutos depois, a avó regressou, trazendo com ela o almoço de Martim num tabuleiro. Era frango assado caseiro, o prato favorito de Martim enquanto criança, coisa que este também já esquecera. E que pena que assim fosse, porque o almoço estava delicioso! Quando terminou, ela convidou-o, ousadamente, para irem até à estância de esqui mais próxima… Era óbvio o que a avó tentava fazer: mostrar-lhe a vida com outros olhos, recordar-lhe o tempo em que fora realmente feliz, incondicionalmente feliz! Sem grande relutância acabou por aceitar.
O dia tinha sido, no mínimo, algo de grandioso, acabando com um serão igualmente bom. Cansado, deitou-se cedo, mas não conseguiu dormir. Sentia que os laços com os avós se tinham tornado inquebráveis. Reflectiu sobre o dia, a aldeia, a morte do pai e Madrid, a noite toda. A vida naquela capital parecia-lhe cada vez mais distante, mas começava a aperceber-se que seria melhor assim. As nuvens afastaram-se e o céu brilhou no escuro. Adormeceu.
Véspera de Natal. Martim sentia que pairava no ar um sossego fatídico como se algo estivesse prestes a mudar (e como!). O pressentimento confirmava-se no dia de natal: a avó Celestina jazia morta, sentada no sofá com o seu velho álbum no colo. Martim, perplexo e confuso, não acreditava. Sem conseguir arranjar uma justificação para a morte ou simplesmente aceitá-la, isolou-se, fechando-se no quarto. Passados dois dias, decide sair e, encontrando a mãe, sorri e dá-lhe um beijo de misericórdia na face húmida… Martim apercebera-se, finalmente, do ciclo que a vida é. Para ele a memória da avó permaneceria para sempre, pois esta ajudara-o a relembrar a alegria de viver. Perdeu-se uma vida, e outra renasceu. O Natal passara. Nevava agora na Serra.

Miguel Castro (Hugo Ricardo Santos – Escola Secundária João de Barros – Corroios)